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Reflexões íntimas de um jovem eleitor em 2018

Atualizado: 9 de jun. de 2019


“Bestificada com as luzes de natal Sem nem imaginar o que vinha depois Ela me disse: As vozes não soam mal Mas eu assassinei as vozes com a Winchester 22.”

(Alpinista do século XXI – Choice)


O ano era 2002. Gustavo tinha 6 anos e acabara de assistir à copa do mundo de futebol, a seleção brasileira conquistou então o inédito pentacampeonato mundial.

-Lembro vagamente de uma campanha publicitária em que o público poderia “falar” com o seu jogador predileto através do telefone. Denílson e Rivaldo foram as minhas primeiras opções. Essa escolha estava intimamente relacionada a minha memória afetiva com a personagem Rivaú da série animada “Captain Tsubasa: road to 2002”, ou “Super Campeões” (nome do anime na versão brasileira).

Acredito que para todos os demais afetados pela tal propaganda, houve alguma experiência anterior capaz de determinar, por inteiro ou não, a decisão entre este ou aquele atleta, por exemplo: uns mais saudosistas poderiam ter escolhido Ronaldinho Gaúcho pelo brilhantismo nas cobranças de falta, que os faziam lembrar do Zico na década de 80; outros de mais idade podem ter escolhido o Kaká, pois projetaram uma relação filial no jovem camisa 22; alguns escolheram com base nos clubes de atuação do jogador; pela aparência física e uma série de outras possibilidades alicerçadas no seu “banco de dados experiencial”. Porém o ideal interno de todos estes era o mesmo. Comunicar. Tornar comum. Pois era apresentado e representado na seleção um imaginário plural e diverso da nação brasileira.

Tempo depois a criança negra, de família católica, pai biológico ausente e financiada por mulheres, estava diante das eleições. Heloisa Helena dos Santos, mãe do Gustavo, trabalhava na Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI) e estudava no Fundação de Ensino e Pesquisa de Itajubá (FEPI atual universitas).

A bagagem de funcionária pública, universitária, arrimo de família, mulher, negra e pobre fez com que a minha mãe acreditasse com clareza* em uma solução política. Essa *claridade tinha nome: Luiz Inácio Lula da Silva. Era uma luz no fim do túnel para um país nebuloso para a interseção que a caracterizava socialmente. A música “Negro drama” dos Racionais mc’s lançada no mesmo ano tem uma ressonância com essa visão, principalmente no trecho que diz assim: “negro drama, tenta vê, e não vê nada, a não ser uma estrela assim: longe e meio ofuscada.”

De mãe para filho. Gustavo estava agora embebido da mesma convicção de Heloisa, com menor entendimento, menor reflexão, mas emoção igual e a flor da pele.

Na minha imaginação, Lula era um ser angelical, uma soteriologia óbvia que chegava a me emocionar de tamanha força. As suas propostas, a sua trajetória de vida, seu discurso, suas convicções se apresentavam tal como meus personagens favoritos dos desenhos animados. Vi que não foram apenas eu e minha mãe que pensávamos assim. Por razões obvias eu não era eleitor naquele momento, e é inviável quantificar as pessoas como eu (apoiadores não votantes do presidente Lula naquela época) mas, para os mais presos em números, o Brasil tinha 115.254.113 nas eleições de 2002, segundo o tribunal superior eleitoral (TSE) o que correspondia a 65, 716% da população, Lula teve no primeiro turno cerca de 46,44% dos votos desse montante, enquanto José Serra teve 23,19%. No segundo turno o fundador do PT foi eleito com 61,27% dos votos.

O minério de ferro foi um grande pilar econômico durante o governo Lula, que possibilitou sim na extensão, criação e manutenção de programas sociais. Por insuficiência teórica do autor na área econômica o texto evitará complexificar os fenômenos no sentido macro da economia.

Esse governo significou um paradoxo interessante para as camadas marginalizadas socialmente (negros, população nativa, mulheres, LGBTTI, pobres e interseções dessas áreas) pois na medida em que melhorava substancialmente aspectos básicos previstos na declaração universal dos direitos humanos para aqueles que outrora (por muitas vezes, e ainda hoje) eram tratados como alienígenas, mais superficial as mudanças se apresentavam. Seja pela real dificuldade de superar estruturas sociais bem consolidadas durante séculos, seja pelo limite de percepção dos governantes em geral, ou até mesmo por uma manutenção (involuntária ou não) de camadas privilegiadas na sociedade por gênero, orientação sexual, cor, etnia e situação financeira. Propostas entendidas como necessárias por movimentos militantes, (cotas raciais por exemplo) foram implantadas, elaboradas, votadas, sancionadas e aplicadas (ou nem tanto) por instituições de poder com baixa representatividade dessas classes periféricas.

Isso significa que o planejamento criou uma hierarquia entre essas questões, no caso das cotas por exemplo: a questão socioeconômica é pré-requisito para um acesso a ação afirmativa étnico-racial a nível de graduação em instituições como a UFJF e UNIFEI. Na prática, o governo desse período criou interseções assimétricas entre os grupos citados. Como consequência ideológica tem-se uma valorização da meritocracia baseada no poder aquisitivo para a resolução dos problemas ligados ao racismo. Em outras palavras, o estado não reconhece as diferentes formas de opressão racial em todas as classes sociais.

Assim a figura de “parúsia” clara* para mim foi se apagando de 4 em 4 anos. 2006 não me empolgou como 2002. Em 2010 com a primeira presidenta do país os espaços pareciam que iriam se transformar, porém o ano de 2014 a minha convicção estava ainda mais longe do que foi o ano de 2002. As minhas experiências pareciam não ter mais voz nesse contexto. Estava entendendo na pele o que o Sabotage quis dizer quando falou: “(...)eleitos querem, seus votos, preferem, paralisia infantil no morro, cresce, ele observe, o crime impede, tu confere. A mãe, pivete, sujeito mais que pé de breque, se eu to com frio, fome, fúria, trombo, clique-clack. Sei que eles doam, mas não pros morros, pra Unicef”. (Canão foi tão bom)

Ainda no ano de 2014 me incomodou profundamente ter que escolher entre “o menos pior” no segundo turno. Não me sentia confortável o suficiente em nenhum dos lados as questões que fazem tanta falta para minha cor eram tratadas como secundarias, inexistentes ou como política de gotejamento. Não pode ser isso! Essa dicotomia toda não me representa. Os azuis chamam minha dor de “mimimi” e os vermelhos querem uma prova de gratidão por conta de migalhas. Foi difícil votar. E ainda está.

2018. O que foi narrado acima agora faz parte do banco de dados do Gustavo. 22 anos de idade. Muita coisa ocorreu nesse período todo, muitos questionamentos, novo ambiente, novas pessoas, mesma religião e com um ar de desconfiança de tudo aquilo que parece conveniente demais.

Tenho para mim que as pesquisas eleitorais desempenham um papel fundamental na espiral “dos silêncios” na eleição dos presidenciáveis. O Observatório de Mídia e Direitos Humanos, do Núcleo de Jornalismo e Audiovisual (NJA), começa a notar a falta de um aprofundamento nas propostas dos candidatos em relação aos Direitos Humanos em grandes emissoras de comunicação. Não esquecendo que no próximo dia 6 de dezembro a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos. Assim consegui inspiração para pensar as implicações desse estudo.

Outro silenciamento é a definição do favoritismo de 3 candidatos (Ciro Gomes, Fernando Haddad e Jair Bolsonaro) através da divulgação de pesquisas sobre as intenções de votos, que acaba por realmente concretizar a premissa, pois os eleitores (até mesmo os não participantes da pesquisa) consideram os outros (10!) candidatos como desperdício de voto no momento em que veem alguma pesquisa sugerindo que estes não teriam chances reais. Interessante pensar que os três candidatos que lideram as pesquisas também figuram entre os 5 presidenciáveis com maior rejeição dos eleitores segundo o Data Folha. Não seria nada estranho afirmar que o favoritismo do trio gira em torno do medo dos seus votantes mais fiéis com a eleição de pelo menos 1 entre os dois rivais.

Pelas declarações do candidato a presidente do PSL e sua postura em relação aos grupos marginalizados em vídeos, comícios e debate, me fazem não o considerar como candidato, ao mesmo tempo que suas propostas e chavões eleitorais não me parecem construtivas para uma suposta diferença que o mesmo prega ser portador. Até mesmo o “ser cristão” para o candidato em questão não me parece ser a mesma postura dos cristãos que admiro, seu vice então parece ter essas limitações ainda mais potencializadas, junto com a vice do candidato Ciro Gomes também. Confesso que comecei a pensar nos vices muito pelo o que aconteceu em 2016.

Por outro lado, o presidenciável do PT apresenta algumas boas propostas interessantes, assim como o candidato que concorre pelo PDT, todavia a briga de ego entre estes para saber de quem seria de fato o projeto X ou Y me faz questionar se pensam realmente na população, se visam melhorar de fato a vida dos grupos periféricos ou se é apenas um discurso “para brasileiro ver”, afinal não só os partidos como também eles estavam já na corte de comando e a frente de ações há pelo menos uma década.

Pois bem, não se pode agradar a gregos e troianos não é mesmo? O “problema” é que eu tenho a cor daquele novo Aquiles da Netflix, e nesse jogo do trono me deparo de novo com uma eleição claramente moldada para garantir o poder a homens brancos. Das pesquisas, passando pelas narrativas construídas para os candidatos até o dia das urnas... Me pergunto então: “será que nós, ‘patriotas’, ‘podemos’ fazer algo de ‘novo’?” ainda temos esperanças para continuar acreditando nos políticos do Brasil?

Bons amigos falam do Guilherme Boulos e sobre suas propostas terem sido formuladas por centenas de pessoas, diversas e plurais. Diferente do presidente do partido de João Amoêdo, Moisés Jardim, que em entrevista à BBC News Brasil, disse o seguinte: “A questão da raça para a gente não é relevante, não é uma prioridade. Entendemos que temos de selecionar as pessoas mais qualificadas e que pensam como nós pensamos” (O Novo é o partido com menos negros concorrendo em sua chapa, segunda a matéria do dia 29 de agosto da BBC Brasil, 1,2%; seguido pelo PSL, 4,7%; PSDB e PSD, 6%). Todavia, pelo fato de todas as propostas interessantes do PSol se concentrarem na candidatura de Boulos, e não em alguém com características periféricas foi inevitável não lembrar da princesa Isabel em 1888, que durante muito tempo (e ainda hoje) escondeu a sua sombra toda a militância para além dela em relação a abolição. Nesse cenário, gostaria de ver uma imagem denegrida** do próximo presidente ou presidenta.

 

“ [Maria]

Viverá e verá, meu filho dará

Sorrirá, cantará, dançará sem parar, sem parar

Viverá e verá, meu filho dará

Sorrirá, cantará, dançará sem parar, sem parar

[Delacruz e Maria]

E o céu será tua casa, voará com tuas asas

Não se abalará por pouco, amaremos feito

Loucos

Será livre como nunca e sorrirá como sempre

Reinaremos por direito e que assim seja feito.”

(Sobre Nós, poesia acústica 2 - Pineapple )


Revista "O Lacre", 2017/Divulgação

Revista "O Lacre", 2017/Divulgação

Precisamos falar de invisibilidade negra. A ausência de pessoas negras em áreas como política, educação e comunicação (e várias outras que levam para outros debates) tem relação íntima com projetos governamentais mesmo pós abolição. Um exemplo é a reforma do Rio de Janeiro no início do século XX. A medida tinha como meta também uma higienização social da população carioca, como afirma Maria Abádia da Silva e Hélio José Santos Maia, no artigo "Educação e sanitarismo no Brasil, um projeto eugenista realizado", publicado na Revista Latino Americana de Historia:

 

“Em relação à educação, a ‘limpeza’ do higienismo e do sanitarismo se refletiu no campo

da eugenia, e para isso, o pensamento eugênico europeu foi difundido no país pelas mãos dos médicos do período, sobretudo Renato Kehl, Edgard Roquette-Pinto, Belisário Penna, portanto, pelas vias da ciência, que reforçava as teses racistas do médico legista Nina Rodrigues. A força do movimento eugênico no Brasil foi tão expressiva que a constituição de 1934 apresenta em seu artigo 138, ao falar da incumbência da União, dos Estados e dos Municípios, entre outros, o de ‘estimular a educação eugênica’.”

 

Os efeitos de políticas eugenistas como essas são diversos. Nota-se que a invisibilização social da população negra não acabou com a Lei Áurea, mas sim foi ganhando novas facetas no céu da pátria.

Outrora o domínio estava claro, era a tentativa de silêncio na base da chibata durante o período escravocrata. A partir da gradativa chegada da mão de obra europeia no final do século XlX (no momento em que a escravidão já não se mostrava mais eficaz para o sistema capitalista), a segregação social migrou para a marginalização dos povos negros. Das senzalas as comunidades periféricas. Trabalhos semiescravos e a manutenção da falta de protagonismo histórico nas narrativas. Essa narrativa da “falta de ação” é o que ajuda no processo de ocultamento. Não por maldade da sociedade em geral, mas sim porque acabou por se tornar mecânico para todos os indivíduos, um fato social. Essas nuances chegam nas eleições 2018 nos discursos sobre as candidatas: Marina Silva (Rede) e Vera Lúcia (PSTU). De modo particular acho complicado atribuir características de "direita e esquerda" na política brasileira. Por isso prefiro dizer que se fossemos encaixar essas candidatas em alguma classificação, seria acertado dizer que a postura da presidenciável da Rede é mais conservadora do que a do PSTU. Mas ambas enfrentam a invisibilização e a superposição de narrativas de terceiros sobre as suas candidaturas, além do questionamento sobre a capacidade de coisas subjetivas como: "liderança", "força", "imposição" e "pulso firme". Apesar de não ter a mesma perspectiva política da Marina em relação ao impeachment da presidenta Dilma (e tudo o que isso implica) vejo com bons olhos a sua capacidade de diálogo com pessoas que pensam diferente. Característica presente até mesmo na escolha do seu vice, Eduardo Jorge.

Me sinto mais a vontade com uma mulher negra no poder, não posso negar. Todavia não a vejo de forma idealizada. E, sinceramente, ainda bem.

É complicado perceber que o caminho de aceitação social de lideranças negras passam por uma ideia (quase regra) de querer encontrar um “novo Martín Luther King”, ou seja, exigindo uma "perfeição" quase que inquestionável daquela figura em diversas áreas. Pelo o que as pesquisas eleitorais desenham e ajudam a construir, dificilmente verei Marina Silva sendo eleita. O medo da chibata infelizmente sai do campo das ideias e se manifesta no mundo material.

2018 não será o ano que contarei para meus descendentes sobre a primeira presidenta ou o primeiro presidente negro, que se reconhece como tal (pois tivemos Nilo Procópio Peçanha que governou de 1909 até 1910 após a morte de Afonso Pena) em solo brasileiro. Para os meus descentes, com um ar de fadiga, acredito que cantarei o trecho do hino nacional: "Se o penhor dessa igualdade, conseguimos conquistar com braço forte, em teu seio, ó liberdade! Desafia o nosso peito a própria morte!" Para que um dia eles possam cantar para os descendentes deles o trecho da música "Sobre nós" citada mais cedo neste texto. Pois é. Está difícil votar. E olha que o diálogo foi apenas sobre o presidente. Pelo meu trajeto (construído através das experiências) creio em situações melhores, em um sistema político que esteja minimamente equalizado algum dia. Com candidatos representativos e propostas substanciais.

 

" (Lourena) (...) Minha bandeira é brasileira eu não desisto nunca, mas se dependesse deles, eu nunca seria.

Minha cor é cor de gente, que 'ceis' não queria ver no topo e não adianta meritocracia." (Orgânica 8, Ladeira da Vida - San Joe, Lourena e Ciro)

 

*O uso das expressões é proposital. Para buscar o sentido social atribuído na dicotomia entre claro e escuro.

**O uso da palavra denegrir é proposital. Historicamente a ideia de “tornar-se negro” ganhou uma conotação pejorativa, este texto tenta sugerir o contrário.

Músicas mencionadas:

1-Alpinista do século XXI – Choice (Nas, Wu-Tang Clan, Noutorious B.I.G e Tupac);

2-Negro Drama – Racionais Mc's;

3-Canão foi tão bom – Sabotage, Negra-Li, DBS, Lakers, Institutos e Ganjaman;

4- Sobre nós (Poesia acústica 2) – BK, Delacruz , Diomedes Chinaski, Ducon, Kayuá e Maria Andrade;

5- Ladeira da vida (Orgânica 8) – San Joe, Lourena e Ciro.

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