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Parábola de Lázaro

Lázaro, “levanta-te e anda”. Mas Lázaro não se levanta e não anda mais. Nas palavras do repórter Roberto Cabrini, no jornal Fala Brasil do dia 28 de junho de 2021, “o alvo foi abatido”. A legenda da entrada ao vivo, feita por volta das 10h40 da manhã, decreta que “Lázaro Barbosa acaba de preso”, enquanto que as imagens mostram a polícia carregando o corpo com um lençol e o colocando dentro de uma ambulância. O clima é de correria e os profissionais de segurança envolvidos na operação não deixam que as câmeras de TV se aproximem. Fecham a porta da ambulância com rapidez e fazem sinais para que ninguém chegue perto. Cabrini repete por três vezes “alvo abatido”.


“Finalmente, ele foi atingido”. Mariana Godoy, âncora do telejornal, diz que Roberto Cabrini é um repórter “muito experiente e tem excelentes fontes dentro da polícia”. No momento em que esta notícia é veiculada na Record, ainda faltava a informação oficial por parte da Secretaria de Segurança Pública de que Lázaro Barbosa, o homem que estava sendo procurado no interior de Goiás por ter assassinado uma família de quatro pessoas no Distrito Federal e também por outros crimes cometidos, mas ainda não confirmados, estava de fato morto.


A população comemora “o trabalho tão intenso de 20 dias” da polícia com queima de fogos. Outro repórter, Dionísio Freitas, entra no ar e comenta que “a única coisa que se sabe é que essa notícia trouxe paz e tranquilidade para os moradores das regiões por onde Lázaro Barbosa de Souza passou nesses últimos 20 dias”. A “brincadeira de gato e rato” chegou ao fim. Mas a informação, reforça Mariana Godoy, não é a oficial, mas a informação de “alguém que a gente confia”, as fontes de Roberto Cabrini, que, alguns minutos depois do início da notícia veiculada, via ligação telefônica, retorna com a informação de que Lázaro, o “serial killer” de fato havia morrido. “Pronto, informação confirmada”, afirma Godoy, sem mais precisar “usar o verbo na condicional”.


“Tentaram socorrê-lo”, diz a segunda âncora do Fala Brasil, Thalita Oliveira. Tentaram socorrer Lázaro, carregando-o em um lençol, colocando-o dentro de uma ambulância, após ser alvejado com 38 tiros. Segundo a polícia, ele entrou em conflito com os profissionais envolvidos na busca. Atirou, mas perdeu a batalha ao ser atingido por, novamente, 38 tiros. Se Jesus Cristo descesse à Terra, a história do Lázaro de Betânia, o ressuscitado, poderia se repetir e o bandido tão procurado seria entrevistado por Roberto Cabrini, o repórter que possui excelentes fontes dentro da polícia, para que o público pudesse entender o por quê de Lázaro ter matado uma família de quatro pessoas e o por quê da polícia ter encontrado R$4.000 em seus bolsos.


Mas não, este Lázaro, o Barbosa - não o de Betânia, aquele descrito no Evangelho segundo São João, irmão de Marta e Maria - só é ressuscitado através do discurso dos telejornais. Como “serial killer”, como alvo abatido, um animal perigoso a ser “caçado”, termo usado em larga escala durante as coberturas jornalísticas televisivas ao longo desses 20 dias de busca.


Existe um outro Lázaro nas histórias bíblicas. O leproso, contado por Jesus Cristo no Evangelho de São Lucas 16, 19-31, o mendigo que divide o protagonismo de sua parábola com um homem rico. Ao morrer, o pobre Lázaro, único personagem das parábolas de Jesus que possui nome, é elevado ao reino dos céus, enquanto o outro protagonista arde nas chamas do inferno. Mas durante toda a sua vida, Lázaro, o leproso, lida com o medo e a repulsa da população por conta das chagas que marcavam todo seu corpo. Por um engano nas transmissões orais das histórias contidas nos Evangelhos, Lázaro de Betânia se torna o protetor dos leprosos.


Confundem-se os Lázaros. O homem negro, temido pela sociedade, é morto com 38 tiros ao melhor estilo “bandido bom é bandido morto”, motivo de orgulho para a polícia e de comemoração para a população local e para a mídia nacional. E não há São Lázaro protetor dos leprosos e mendigos e desvalidos que faça com que os jornalistas da Record deixem de usar palavras como “criminoso”, “bandido”, que “aterrorizou” a região ao longo dos 12 minutos e 28 de segundos da notícia. Lázaro não “resistiu à gravidade dos ferimentos”, reforça o repórter Dionísio Freitas. Lázaro não será ouvido na delegacia. Lázaro será enterrado com suas 38 chagas e todos os seus crimes serão revelados ao longo das próximas semanas. Na Record, ao menos, a emissora das novelas bíblicas, propriedade do Bispo Macedo, cogitar, não a inocência de Lázaro - visto que compreende-se a gravidade dos crimes cometidos por ele, mas ao menos a ilegalidade da operação policial é algo impensável.


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