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Corpos sem donos; corpos com donas

Por Carolina Doro

Por que, ainda hoje, homens tomam decisões sobre os corpos de mulheres? Para além da questão da representatividade política, como é possível que pensem ter qualquer tipo de entendimento sobre o corpo feminino e a legitimidade para dizer o que mulheres devem ou não fazer com eles?


Vamos falar sobre o aborto e o quão urgente é descriminalizar e legalizar essa prática. Se precisamos recorrer aos números para que nossos argumentos sejam valorizados, que assim o façamos. De acordo com o Ministério da Saúde, o aborto é a 5ª causa de morte materna no país, e os gastos aos cofres públicos com abortos clandestinos são altos: em 2017, o custo com curetagens foi de R$ 37,97 milhões. Já a aspiração tem custo de R$ 120,00, de modo que a estimativa seja de R$ 1,56 milhão gastos no mesmo ano.


Resumindo: o sistema público de saúde tem despesas significativas com consequências do aborto ilegal. A estimativa de especialistas é de redução de custos caso o procedimento seja legalizado.

Não podemos discutir o aborto sob a lógica religiosa ou da “moral”, afinal, independente de raça, classe ou religião, mulheres fazem aborto. Ponto. Outra questão surge quando analisamos as variáveis “raça” e “classe”. Dados revelam que a maioria das mulheres que morrem em decorrência de abortos mal sucedidos é pobre e negra. Ou seja, mulheres com recursos abortam em clínicas com todo suporte necessário; mulheres sem recursos, não.


Retrocedendo


O tema do aborto voltou à discussão no último dia 15 de maio, quando o Senado do estado americano do Alabama sancionou uma lei que o proíbe em quase todos os casos, exceto quando há risco de morte para a mãe, mas sem ressalvas para vítimas de incesto ou estupro. A nova lei – a mais severa do país sobre o tema – condena o aborto como homicídio, e o médico que realizar o procedimento pode pegar até 99 anos de prisão.


Durante entrada ao vivo no noticiário Hora 1, no dia 15 de maio, a correspondente da Globo em Londres, Cecília Malan, noticiou sobre a sanção da lei. Finalizando sua participação, ao falar que 31 homens e apenas três mulheres (componentes do Senado do Alabama) têm o poder de decidir sobre os corpos das mulheres, expressou uma discreta indignação: “Inacreditável, não é? Tem algo muito errado aí.”

E tem mesmo.


Precisamos lembrar que o aborto é legalizado nos Estados Unidos desde 1973, graças à decisão conhecida como “Roe vs. Wade”, que permitiu a prática em todo o país até as 24 semanas de gestação.



Manifestação tomou as ruas de várias cidades nos Estados Unidos em oposição à lei no dia 21 de maio. Na foto, uma mulher segura uma placa com "tire as mãos de Roe v. Wade" em Montgomery, no Alabama. (Foto: Butch Dill/Associated Press)

O retrocesso representado pela elaboração da nova lei no Alabama faz parte de uma ofensiva republicana que busca levar a discussão do aborto à Suprema Corte. Eles desejam que os magistrados, atualmente em maioria conservadora, revertam a legalidade do aborto a nível nacional. O presidente Donald Trump já se posicionou a respeito do tema e disse que, apesar de ser “pró-vida”, está de acordo com o aborto em três casos: estupro, incesto e para proteger a vida da mãe.

Até o Trump.


Uma palavra: autonomia


No Brasil, legislação sobre o aborto permite a prática em casos de estupro, de feto com anencefalia e de risco de vida para a mãe ou para a criança, mas ainda estamos longe de chegar à descriminalização e legalização da prática em todos os casos.

O corpo feminino não deveria ser passível de discussão política, ainda mais se essa discussão for encabeçada por homens. Infelizmente, com um congresso atual conservador e uma bancada evangélica forte, o debate sobre aborto sofre influência religiosa, e não recai na questão da saúde pública. Segundo a Organização Mundial da Saúde, nos países em que o aborto é legalizado, as taxas são mais baixas do que nos países que proíbem.


Mulheres pela descriminalização do aborto em ato no Rio de Janeiro em março de 2016. (Foto: Fernando Frazão/Ag. Brasil)

Tirar das mulheres a autonomia e os direitos sobre seus próprios corpos não impede que elas os proclamem, seja como for. Se o Estado ainda nega esses direitos, não deveria investir na base, na educação sexual nas escolas, no fornecimento de uma ampla gama de métodos contraceptivos, e no investimento em conselhos de planejamento familiar?


Se isso também está muito longe de ser posto em prática, então a luta das mulheres pelo controle sobre seus corpos e de sua saúde reprodutiva também está distante de um ponto final.

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